sexta-feira, 19 de fevereiro de 2010

Fiodor Dostoievski - Os Irmãos Karamazovi

Os Irmãos Karamazovi é um dos livros mais penetrantes (no bom sentido) que já tive a oportunidade de ler. Escrito em 1879, é uma das mais importantes obras das literaturas russas e mundiais, ou, conforme afirmou Freud: "a maior obra da história". Não sei se concordo com ele, mas certamente reconheço a grandeza do livro.

Na história do trio de irmãos, várias discussões são levantadas, tais como a existência de deus, a necessidade de amor aos familiares e ao próximo, a crítica aos valores "científicos" ocidentais, entre outros. Dois pontos me chamaram a atenção. O primeiro diz respeito à vida após os 30 anos. Não por acaso, defendo há muito tempo uma idéia parecida, ou seja, de que essa idade simboliza o ponto mais alto da vida. A partir daí inícia a decadência dos homens. Fiquei pasmo quando li os trechos sobre esse tema.

O segundo aspecto é a a forte presença de temas como a vingança e as dúvidas sobre o papel do cristianismo. Essas discussões vão simplesmente fundamentar as bases da filosofia nietzscheana posteriormente. Chama a atenção como muitas idéias do filósofo alemão bebem na obra de Dostoievski.

Enfm, para quem tem predileção por temas existenciais, políticos e sociais, deve ter em sua estante esta bela obra da mais pura litertura russa. Abaixo apresento alguns trechos que considero interessantes na obra.

DOSTOIEVSKI, Fiodor. Os irmãos Karamazovi. São Paulo: Martin Claret, 2007.

Definições psicológicas
Muitas vezes, as pessoas, mesmo más, são mais ingênuas, mais simples do que o pensamos. Nós também, aliás. 16

Definições psicológicas: Aliócha
Entre seus condiscípulos, jamais queria pôr-se à frente. Por esta razão, talvez, jamais temia alguém e os rapazes notavam que, longe de orgulhar-se disso, parecia ignorar sua ousadia, sua intrepidez. Não era rancoroso. Uma hora após ter sido ofendido, respondia ao ofensor ou dirigia-lhe ele próprio a palavra, com um ar confiante, tranqüilo, como se nada se tivesse passado entre eles. Não parecia então ter esquecido a ofensa, ou decidido perdoá-la, mas não se considerava ofendido e isto fazia com que conquistasse o coração dos meninos. 26

Prazer na ofensa
Justamente, justamente, senti prazer em toda a minha vida com as ofensas, por um sentimento de estética, porque ser ofendido não somente causa prazer, mas por vezes é belo. 51

Questão moral. Ingratidão
Mas se o doente, cujas úlceras tu lavas, te pagar com ingratidão, se puser a atormentar-te com seus caprichos, sem apreciar nem notar teu devotamento, se gritar contra ti, se se mostrar exigente e queixar-se mesmo à diretoria (como acontece muitas vezes quando se sofre muito), farás então o quê? Continuará o teu amor?" Imaginai que já decidi, com um arrepio: "Se há alguma coisa que possa esfriar imediatamente meu amor *que age* em favor da humanidade, é unicamente a ingratidão". Numa palavra: trabalho por um salário, exijo-o imediatamente, sob forma de elogios e de amor em troca do meu. De outro modo, não posso amar ninguém. 63

Amar a humanidade e detestar pessoas
"Eu amo", dizia ele, "a humanidade, mas admiro-me de mim mesmo. Tanto mais amo a humanidade em geral, quanto menos amo as pessoas em particular, como indivíduos. Muitas vezes tenho sonhado apaixonadamente em servir à humanidade, e talvez tivesse verdadeiramente subido ao calvário por meus semelhantes, se tivesse sido preciso, muito embora não possa viver com ninguém dois dias no mesmo quarto. Sei-o por experiência. Desde que alguém está junto de mim, sua personalidade oprime meu amor-próprio e constrange minha liberdade. Em 24 horas, posso mesmo antipatizar com. as melhores pessoas uma, porque fica muito tempo na mesa, outra, porque está resfriada e só faz espirrar. Torno-me o inimigo, dos homens, apenas se acham eles em contato comigo. Em compensação, invariavelmente, quanto mais detesto as pessoas em particular, tanto mais ardo de amor pela humanidade em geral.". 64

Os crimes e a Igreja
Se a Igreja absorvesse tudo, excomungaria o criminoso e o refratário, mas não cortaria as cabeças — continuou Ivã Fiódorovitch. — Pergunto-vos: aonde iria o excomungado? Porque deveria, então, não somente separar-se das pessoas, mas do Cristo. Pelo seu crime, insurgir-se-ia não só contra as pessoas, mas contra a Igreja do Cristo. É o caso, atualmente, sem dúvida, no sentido estrito, no entanto não é proclamado, e a consciência do criminoso de hoje transige muitas vezes: "Roubei", diz ela, "mas não vou contra a Igreja, não sou o Inimigo do Cristo". Eis o que diz freqüentemente o criminoso de hoje. Pois bem, quando a Igreja tiver substituído o Estado, ser-lhe-á difícil falar assim, a menos que negue a Igreja na terra inteira: 'Todos", diria ele, "estão no erro, todos se desviaram, a Igreja deles é falsa, somente eu, assassino e ladrão, sou a verdadeira Igreja cristã". É dificílimo manter esta linguagem, supõe isto condições extraordinárias, circunstâncias que raramente existem. Atualmente, considerai de outra parte o ponto de vista da própria Igreja para com o crime: será que não deveria modificar-se em oposição ao de hoje, que é quase pagão, e, de meio mecânico de cortar um membro gangrenado, como se pratica atualmente para preservar a sociedade, transformar-se totalmente na idéia da regeneração do homem, de sua ressurreição e de sua salvação?... 69-70

Igreja como Estado
Se a sociedade inteira se convertesse em Igreja, então não somente a justiça da Igreja influiria sobre a emenda do criminoso como não o faz nunca atualmente, mas os próprios crimes diminuiriam em proporção inverossímil. 72

Socialismos
O socialista cristão é mais perigoso que o socialista ateu". Estas palavras tinham-me abalado então, e agora, senhores, junto de vós, elas me voltam à memória... 73

Sobre amar seus semelhantes
Há cinco dias, numa reunião em que se achavam sobretudo senhoras, declarou ele solenemente, no curso duma discussão, que nada no mundo obrigava as pessoas a amar seus semelhantes, que não existia nenhuma lei natural ordenando ao homem que amasse a humanidade; que se o amor havia reinado até o presente sobre a terra, era isto devido não à lei natural, mas unicamente à crença das pessoas em sua imortalidade. Ivã Fiódorovitch acrescentou entre parênteses que nisso está toda a lei natural, de sorte que se destruís no homem a fé em sua imortalidade, não somente o amor secará nele, mas também a força de continuar a vida no mundo. Mais ainda, não haverá então nada de imoral, tudo será autorizado, até mesmo a antropofagia. Não é tudo: terminou afirmando que para cada indivíduo — nós agora, por exemplo — que não acredita nem em Deus, nem em sua imortalidade, a lei moral da natureza devia imediatamente tornar-se o inverso absoluto da precedente lei religiosa; que o egoísmo, mesmo levado até a perversidade, devia não somente ser autorizado, mas reconhecido como a saída necessária, a mais razoável e quase a mais nobre. De acordo com tal paradoxo, julguem o resto, senhores, julguem o que o nosso querido e excêntrico Ivã Fiódorovitch acha bom proclamar e suas intenções eventuais... 75

Virtude e imortalidade
Sim, afirmei-lo Não há virtude sem imortalidade. 76

Dor e felicidade
Tal é tua vocação: procurar a felicidade na dor. 83

Poder da mulher
Que um homem se apaixone por uma beldade qualquer, por um corpo de mulher, até mesmo somente por uma parte desse corpo (um voluptuoso me compreenderia imediatamente), entregará por causa dela seus próprios filhos, venderá pai e mãe, a Rússia e a pátria; honesto, irá roubar; manso, assassinará; fiel, trairá. 86

Definições psicológicas: Gregório
No seu aspecto exterior, era Gregório um homem frio e grave, pouco falador, proferindo palavras ponderadas, isentas de frivolidades, À primeira vista, não se podia adivinhar se amava ou não sua mulher, doce e submissa, não obstante a amasse verdadeiramente e ela o compreendesse sem dúvida. Essa Marfa Ignátievna, longe de ser estúpida, era talvez mais inteligente que seu. marido, em todo caso mais judiciosa nos negócios da vida; entretanto, era-lhe cegamente submissa, desde o começo de seu casamento, e respeitava-o sem contradição pela sua altitude moral. É preciso notar que trocavam muito poucas palavras, somente a propósito das coisas indispensáveis da vida corrente. O grave e majestoso Gregório meditava sempre sozinho seus negócios e suas preocupações, de sorte que Marfa Ignátievna compreendera desde muito tempo que não tinha ele de modo algum necessidade de seus conselhos. 101

Gostava extremamente do Livro de Jó, arranjara uma coletânea das palavras e sermões de "nosso Santo Padre Isaac, o Sírio", que se obstinou em ler durante anos, quase sem nada compreender daquilo, mas por esta razão talvez apreciasse e amasse aquele livro acima de tudo. 103

Mulheres
Muitas mulheres gostam dessa liberdade de expressão, nota-o bem; além do mais, era muito divertido com uma moça igual a ela. 118.

Definições psicológicas
Porque, se tenho instintos baixos, sou contudo leal. 121

O limite entre ódio e amor
O ódio que só está separado do amor mais ardente por um cabelo. 122

Destino
Mas o destino se cumprirá, cada qual segundo seus méritos; o réprobo afundar-se-á definitivamente no lamaçal de que gosta. 125

A luz da criação
Nada. Deus criou o mundo no primeiro dia; o sol, a lua e as estrelas no quarto dia. Donde vinha, pois, a luz do primeiro dia? 132

A existência de Deus
Mas dize-me, no entanto, há um Deus ou não? Somente é preciso que me fales seriamente.
— Não, não há Deus.
— Aliócha, Deus existe?
— Sim, existe.
— Ivã, há imortalidade? Por pequena que seja, por mais modesta?
— Não, não há.
— Nenhuma?
— Nenhuma.
— Quer dizer, um zero absoluto, ou uma parcela? Não haveria uma parcela?
— Um zero absoluto.
— Aliócha, há imortalidade?
— Sim.
— Deus e a imortalidade juntos?
— Sim. É em Deus que repousa a imortalidade.
— Hum! Deve ser Ivã quem tem razão. Senhor, quando se pensa quanto de fé e de energia essa quimera tem custado ao homem, em pura perda, desde milhares de anos! Quem, pois, zomba assim da humanidade? Ivã, pela derradeira vez e categoricamente: há um Deus, sim ou não?
— Não, pela derradeira vez.
— Quem, pois, zomba do mundo, Ivã?
— O diabo, provavelmente — escarneceu Ivã.
— O diabo existe?
— Não, não existe.
— Tanto pior. Não sei o que teria eu feito ao primeiro fanático que inventou Deus. Enforcá-lo seria insuficiente!
— Sem essa invenção, não haveria civilização. 142

Sobre mentir a si mesmo
Quanto ao direito, quem, pois, não tem o direito de desejar?
— Não a morte de outrem.
— E por que não a morte? De que serve mentir a si mesmo, quando todos vivem assim e sem dúvida não podem viver de outro modo? Pensas no que disse ainda há pouco, que "os dois répteis se devoram um ao outro"? Crês-me capaz, como Dimítri, de derramar o sangue de Esopo, de matá-lo, enfim? 151

Beleza russa
Na verdade, era até mesmo bela, bastante bela, uma beleza russa, a que suscita tantas paixões156

Ciência e as análises compartimentadas que perdem a noção do todo
a ciência do mundo, tendo-se desenvolvido neste século sobretudo, dissecou nossos livros santos e, após uma análise impiedosa, nada deixou subsistir. Mas, dissecando as partes, perderam de vista o conjunto, e sua cegueira é de causar espanto. O conjunto se ergue diante dos olhos deles, tão inabalável quanto antes, e o inferno não prevalecerá contra ele. 177

Libertinagem e hipocrisia
Meu caro filho Alieksiéi Fiódorovitch, fica sabendo bem, porque quero viver até o fim na libertinagem. É a existência mais agradável; todo mundo deblatera contra ela e todo mundo nela vive, mas às ocultas, e eu, em pleno dia. 179.

Tapados
Costuma permanecer calado e sorrir com ironia, como se isso significasse erudição. 179.

Mulheres e amores
Eis os indivíduos a quem essas ternas senhoritas amam: farristas, malandros! 181

Crianças
Essa idade é impiedosa; tomados separadamente são uns anjos, mas todos juntos são implacáveis, sobretudo na escola 210

Pinheiros e pessoas
Os pinheiros não são como as pessoas, ficam muito tempo sem mudar 219

Homem desgraçado
é extremamente penoso para um desgraçado ver que todos se consideram como benfeitores seus... 221

Definições psicológicas
Alieksiéi Fiódorovitch, você é de uma bondade supreendente, mas por vezes tem o ar pedante... no entanto, vê-se que você não o é. 222

Prazer pela vida. Trinta anos
Se não tivesse mais fé na vida, se duvidasse duma mulher amada, da ordem universal, persuadido ao contrário de que tudo não é senão um caos infernal e maldito e estivesse eu preso dos horrores da desilusão — mesmo então quereria viver ainda assim. Depois de ter bebido na taça encantada, só a deixaria uma vez esgotada. Aliás, perto dos trinta anos, pode ser que sinta saudade dela, mesmo inacabada, e irei... não sei aonde. Mas, até os trinta anos, tenho a certeza, minha mocidade triunfará de tudo, do desencanto, do desgosto de viver. Muitas vezes tenho perguntado a mim mesmo se haveria no mundo um desespero capaz de vencer em mim esse furioso apetite de viver, inconveniente talvez; e penso que ele não existe, pelo menos antes de trinta anos. 235

Trinta anos
Nosso pai não quer renunciar a ela antes dos setenta anos, ou mesmo dos oitenta. Disse-o muito seriamente, embora seja um palhaço. Agarra-se à sua sensualidade como a um rochedo... Na verdade, após os trinta anos, não há outro recurso talvez. Mas é vil entregar-se a isso até os setenta. Melhor vale cessar aos trinta. Conserva-se uma aparência de nobreza, ao mesmo tempo que se engana a si mesmo. 237

Russos e as questões da existência
Sim, para os verdadeiros russos, as questões da existência, de Deus, da imortalidade da alma, ou, como dizes, as mesmas encaradas sob outra face, são primordiais, e tanto melhor assim 239

Nietzsche: foi Deus quem criou o homem, ou o homem quem criou Deus
Sabes, meu caro, que havia um velho pecador no século XVIII que disse: "Si Dieu riexistait pas, il foudrait Vinventer"? E, com efeito, foi o homem quem inventou Deus. E o que é espantoso não é que Deus exista realmente, mas que essa idéia da necessidade de Deus tenha vindo ao espírito de um animal feroz e mau como o homem, tão santa, comovente e sábia é ela, tanta honra faz ao homem. Quanto a mim, renunciei desde muito tempo a perguntar a mim mesmo se foi Deus quem criou o homem, ou o homem quem criou Deus. Bem entendido, não passarei em revista todos os axiomas que os adolescentes russos deduziram das hipóteses européias, porque o que na Europa é uma hipótese torna-se logo um axioma para os ditos. adolescentes, e não somente para eles mas para seus professores, que muitas vezes se lhes assemelham. De modo que afasto todas as hipóteses: qual é, com efeito, nosso desígnio? Meu desígnio é explicar-te o mais rapidamente possível a essência de meu ser, minha fé e minhas esperanças. Assim, declaro admitir Deus, pura e simplesmente. É preciso notar, no entanto, que, se Deus existe, se criou verdadeiramente a terra, fê-la, como se sabe, segundo a geometria de Euclides, e não deu ao espírito humano senão a noção das três dimensões do espaço. Entretanto, encontraram-se, encontram-se ainda geômetras e filósofos, mesmo eminentes, para duvidar de que todo o universo e até mesmo todos os mundos tenham sido criados somente de acordo com os princípios de Euclides. Ousam mesmo supor que duas paralelas que, de acordo com as leis de Euclides, jamais se poderão encontrar na terra, possam encontrar-se, em alguma parte, no infinito. Decidi, sendo incapaz de compreender mesmo isto, não procurar compreender Deus. Confesso humildemente minha incapacidade em resolver tais questões; tenho essencialmente o espírito de Euclides: terrestre. De que serve querer resolver o que não é deste mundo? E aconselho-te a jamais quebrar a cabeça a respeito, meu amigo Aliócha, sobretudo a respeito de Deus: existe ele ou não? Essas questões estão fora do alcance dum espírito que só tem a noção das três dimensões. Assim, admito Deus, não só voluntariamente, mas ainda sua sabedoria, seu fim que nos escapa; creio na ordem, no sentido da vida, na harmonia eterna, na qual se pretende que nos fundiremos um dia: creio no Verbo para o qual propende o Universo que está em Deus e que é ele próprio Deus, até o infinito. Estou no bom caminho? Imagina que, em definitivo, esse mundo de Deus, eu não o aceito e, embora saiba que ele existe, não o admito. Não é Deus que repilo, nota bem, mas a criação; eis o que me recuso admitir. Explico-me: estou convencido, como uma criança, de que o sofrimento desaparecerá, que a comédia revoltante das contradições humanas se esvaecerá como uma lamentável miragem, como a manifestação vil da impotência mesquinha, como um átomo do espírito de Euclides; que no fim do drama, quando aparecer a harmonia eterna, uma revelação se produzirá, preciosa a ponto de enternecer todos os corações, de acalmar todas as indignações, de resgatar todos os crimes e o sangue vertido; de sorte que se poderá não só perdoar, mas justificar tudo quanto se passou sobre a terra. Que tudo isso se realize, seja, mas não o admito e não quero admiti-lo. Que as paralelas se encontrem sob meus olhos, verei e direi que se encontraram; e no entanto não o admitirei. Eis o essencial, Aliócha, eis minha tese. Comecei expressamente nossa conversa duma maneira que não podia ser mais idiota, mas levei-a até minha confissão, porque é o que esperas. Não era a questão de Deus que te interessava, mas a vida espiritual de teu irmão querido. Tenho dito. 240-241

Desespero
O espírito é desleal, mas há honestidade na idiotice. Quanto mais idiotamente confessar o desespero que me acabrunha, tanto melhor valerá isto para mim. 242

Nietzsche: Amar o próximo
Devo confessar-te uma coisa — começou Ivã. — Jamais pude compreender como se pode amar seu próximo. É precisamente, na minha idéia, o próximo que não se pode amar, ou somente a distância. Li, em alguma parte, a propósito de um santo, João, o Misericordioso, a quem um passante faminto e franzido de frio foi um dia suplicar que o aquecesse; o santo deitou-se com ele, tomou-o nos seus braços e se pôs a insuflar seu hálito na boca purulenta do infeliz, infectada por uma horrível moléstia. Estou persuadido de que fez isso com esforço, mentindo a si mesmo, num sentimento de amor ditado pelo dever e por espírito de penitência. Para que se possa amá-lo, é preciso que um homem esteja oculto; desde que ele mostra seu rosto, o amor desaparece. 242

Amar o próximo
Os mendigos, sobretudo aqueles que têm alguma nobreza, não deveriam jamais mostrar-se, mas pedir esmola por intermédio dos jornais. Em teoria, ainda, pode-se amar seu próximo, e até mesmo de longe; de perto, é quase impossível. 243

Homens x Animais
Compara-se por vezes a crueldade do homem com a dos animais selvagens; é uma injustiça para com estes. As feras não atingem jamais os refinamentos do homem. O tigre dilacera sua presa e a devora; não conhece outra coisa. Não lhe viria à idéia pregar as pessoas pelas orelhas, ainda mesmo que o pudesse fazer. São os turcos os que torturam crianças com um prazer sádico, arrancam os bebês do ventre materno, lançam-nos no ar para recebê-los nas pontas das baionetas, sob os olhos das mães, cuja presença constitui o principal prazer. 244

O homem e o diabo
Penso que se o diabo não existe e foi por conseguinte criado pelo homem, este deve tê-lo feito à sua imagem. 245

Crime e castigo
Na Rússia, se bem que seja absurdo decapitar um irmão pela única razão de ter-se tornado dos nossos e tê-lo tocado a graça, temos quase coisa igual. Entre nós, torturar batendo constitui uma tradição histórica, um gozo pronto e imediato. Niekrássov conta num de seus poemas como um mujique bate com seu chicote nos olhos de seu cavalo. Quem já não viu isso? É bem russo. 247

Questão moral
Esfregavam-lhe os próprios excrementos na cara, e sua mãe, sua própria mãe obrigava-a a comê-los! E essa mãe dormia tranqüila, insensível aos gritos da pobre criança fechada naquele lugar repugnante! Vês tu daqui aquele pequeno ser, não compreendendo o que lhe acontece, no frio e na escuridão, bater com seus pequeninos punhos no peito ofegante e derramar lágrimas inocentes, chamando o "bom Deus" em seu socorro? Compreendes esse absurdo, tem ele um fim, meu amigo e meu irmão, tu, o noviço piedoso? Dizem que tudo isso é indispensável para estabelecer a distinção entre o bem e o mal no espírito do homem. Para que pagar tão caro essa distinção diabólica? Toda a ciência do mundo não vale as lágrimas das crianças. Não falo dos sofrimentos dos adultos. Eles comeram o fruto proibido, que o diabo os leve! Mas as crianças! 248

Tolices e compreensão
Fica sabendo, noviço, que as tolices são necessárias ao mundo; sobre elas é que ele se funda: sem essas tolices, nada se passaria aqui na terra. Sabemos o que sabemos.
— Que sabes tu?
— Nada compreendo — prosseguiu Ivã, como em sonho —, nada quero compreender agora. Atenho-me aos fatos. Há tempos já resolvi não compreender. Se quero compreender, altero os fatos...
249

Questão moral
Se todos devem sofrer, a fim de concorrer com seu sofrimento para a harmonia eterna, qual o papel das crianças? 250
Acredita-me, Aliócha, pode ser que eu viva até esse momento ou que ressuscite então, e exclamarei talvez com os outros, vendo a mãe beijar o carrasco de seu filho: "Tu tens razão, Senhor Deus!", mas será contra minha vontade. Enquanto ainda é tempo, recuso-me a aceitar essa harmonia superior. Acho que não vale ela uma lágrima de criança, daquela pequenina vítima que batia no peito e rezava ao "bom Deus", no seu canto infecto; não as vale, porque aquelas lágrimas não foram redimidas. Enquanto assim for, não se poderá falar de harmonia. Ora, não há possibilidade de redimi-las. Os carrascos sofrerão no inferno, dir-me-ás tu. Mas de que serve esse castigo, uma vez que as crianças tiveram também o seu inferno? Aliás, que vale essa harmonia que comporta um inferno? Quero o perdão, o beijo universal, a supressão do sofrimento. E, se o sofrimento das crianças serve para perfazer a soma das dores necessárias à aquisição da verdade, afirmo desde agora que essa verdade não vale tal preço. Não quero que a mãe perdoe ao carrasco, não tem esse direito. Que lhe perdoe seu sofrimento de mãe, mas não o que sofreu seu filho estraçalhado pelos cães. Ainda mesmo que seu filho perdoasse, não teria ela o direito. Se o direito de perdoar não existe, que vem a tornar-se a harmonia? Há no mundo um ser que tenha esse direito? Por amor pela humanidade é que não quero essa harmonia. Prefiro conservar meus sofrimentos não redimidos e minha indignação persistente, mesmo se não tivesse razão! Aliás, deram realce excessivo a essa harmonia, a entrada custa demasiado caro para nós. Prefiro entregar meu bilhete de entrada. Como homem de bem, tenho mesmo obrigação de devolvê-lo o mais cedo possível. É o que faço. Não recuso admitir Deus, mas muito respeitosamente devolvo-lhe meu bilhete. 251

Questão moral
Responde-me francamente. Imagina que os destinos da humanidade estejam entre tuas mãos e que, para tornar as pessoas definitivamente felizes, proporcionar-lhes afinal a paz e o repouso, seja indispensável torturar um ser apenas, a criança que batia no peito com seu pequeno punho, e basear sobre suas lágrimas a felicidade futura. 251

Pão e liberdade
Compreenderão por fim que a liberdade e o pão da terra à vontade para cada um são inconciliáveis, porque jamais saberão reparti-los entre si! 259

O homem e seu desejo de livrar-se das responsabilidades
Os povos forjaram deuses e desconfiaram uns dos outros: 'Abandonai vossos deuses, adorai os nossos, senão, ai de vós e de vossos deuses!' E assim será até o fim do mundo, mesmo quando os deuses tiverem desaparecido; prosternar-se-ão diante dos ídolos. Tu não ignoravas, tu não podias ignorar esse segredo fundamental da natureza humana e, no entanto, repeliste a única bandeira infalível que te ofereciam e que teria curvado sem contestação todos os homens diante de ti, a bandeira do pão terrestre; rejeitaste-a em nome do pão do céu e da liberdade! Vê o que fizeste em seguida, sempre em nome da liberdade! Não há, repito-te, preocupação mais aguda para o homem que encontrar o mais cedo possível um ser a quem delegar esse dom da liberdade que o infeliz traz consigo ao nascer. Mas, para dispor da liberdade dos homens, é preciso dar-lhes a paz da consciência. O pão te garantia o êxito; o homem se inclina diante de quem lhe dá, porque é uma coisa incontestável, mas, se um outro se torna senhor da consciência humana, largará ali mesmo o teu pão para seguir aquele que cativa sua consciência. Nisto tu tinhas razão, porque o segredo da existência humana consiste não somente em viver, mas ainda em encontrar um motivo de viver. Sem uma idéia nítida da finalidade da existência, prefere o homem a ela renunciar e se destruirá em vez de ficar na terra, embora cercado de montes de pão. 260

Questionamento para Jesus
Tu não desceste da cruz, quando zombavam de ti e gritavam-te, por derrisão: 'Desce da cruz e creremos em ti'. Não o fizeste, porque de novo não quiseste sujeitar o homem por meio de um milagre. Desejavas uma fé livre e não inspirada pelo maravilhoso. Tinhas necessidade de um livre amor e não dos transportes servis dum escravo aterrorizado. Aí ainda, fazias idéia demasiado alta dos homens, porque são escravos, se bem que tenham sido criados rebeldes. 261

Natureza humana
a natureza humana não tolera a blasfêmia e acaba sempre por tirar vingança dela. Assim, a inquietação, a perturbação, a desgraça, tal o quinhão dos homens, após os sofrimentos que suportaste pela liberdade deles. 262

Liberdade
Nós tornamos todos os homens felizes e as revoltas e os massacres inseparáveis de tua liberdade cessarão. Oh! Nós os persuadiremos de que não serão verdadeiramente livres senão abdicando de sua liberdade em nosso favor. Pois bem, diremos a verdade ou mentiremos? Convencer-se-ão eles próprios de que dizemos a verdade, porque se lembrarão daquela servidão e daquela perturbação em que os mergulhou a tua liberdade. 264

A liberdade individual e medíocre
Suponhamos que entre essas criaturas sedentas somente de bens materiais seja encontrada uma só como o meu velho inquisidor, que viveu de raízes no deserto e encarniçou-se em domar seus sentidos para se tornar livre, para atingir a perfeição; no entanto, sempre amou a humanidade. De repente, vê claro, dá-se conta de que é uma felicidade medíocre atingir a liberdade perfeita, quando milhões de criaturas permanecem para sempre desgraçadas, demasiado fracas para usar de sua liberdade, de que esses revoltados débeis não poderão jamais terminar sua torre, e de que não é para tais gansos que o grande idealista sonhou sua harmonia. 267

Se Deus não existe, tudo é permitido
Pois seja, "tudo é. permitido", já que se disse isto. Não me retrato. Aliás, Mítia formulou-a bastante bem. 269

Forças exteriores
O que o irritava sobretudo era que aquela ansiedade tinha uma causa fortuita, exterior, sentia-o ele. 271

Solidão e individualismo
"Que isolamento?", perguntei. "Reina ele em toda parte na hora atual, mas não está terminado e seu termo ainda não chegou. Porque, no presente, cada qual aspira a separar sua personalidade dos outros, quer gozar ele próprio a plenitude da vida; entretanto, todos esses esforços, longe de atingir o alvo, só resultam num suicídio total, porque, em lugar de afirmar plenamente sua personalidade, caem numa solidão completa. Com efeito, neste século, todos se fracionaram em unidades, cada qual se isola no seu buraco, separa-se dos outros, oculta-se, ele e seus bens, afasta-se de seus semelhantes e os afasta de si. Amontoa riqueza sozinho, felicita-se pelo seu poder e pela sua opulência; ignora, o insensato; que, quanto mais amontoa, mais se enterra numa impotência fatal. Porque está habituado a só contar consigo mesmo e destacou-se da coletividade, acostumou-se a não crer na entreajuda, no seu próximo, na humanidade, e treme somente à idéia de perder sua fortuna e os direitos que ela lhe confere. 306

Liberdade e natureza
Concebendo a liberdade como o aumento das necessidades e sua pronta satisfação, alteram-lhes a natureza, porque fazem nascer neles uma multidão de desejos insensatos, de hábitos e imaginações absurdos. 316

Bebida
O povo está desmoralizado pela bebedice e não pode curar-se dela. Quantas crueldades na família, para com a mulher e mesmo para com os filhos, causadas por ela! Vi nas fábricas crianças de nove anos, débeis, atrofiadas, curvadas e já corruptas. Um local sufocante, o barulho das máquinas, o trabalho incessante, as obscenidades, a aguardente, é isso que convém à alma dum menino? Precisa é de sol, dos jogos de sua idade, de bons exemplos e de um mínimo de simpatia. 318

Razão e religião
Adeptos da ciência, querem organizar-se eqüitativamente pela razão apenas, mas sem o Cristo, como outrora; já proclamaram que não há crime nem pecado. Têm razão de acordo com seu ponto de vista, porque sem Deus, onde está o crime? 318

Exploração
Mas fui esclarecido pelo pensamento de meu querido irmão, que ouvira na minha infância: "Serei digno de ser servido por outrem? Tenho o direito de explorar sua miséria e sua ignorância?" Admirava-me então de que as idéias mais simples, as mais evidentes, nos venham tão tarde ao espírito. 320

Homens, animais e crianças
Homem, não te ergas acima dos animais; eles não têm pecado, ao passo que com tua grandeza manchas a terra com tua aparição, deixando após ti um rasto de podridão — ai! quase todos nós! Amai particularmente as crianças, porque elas, como os anjos, também não têm pecado; existem para comover-nos os corações, purificá-los, são para nós como uma indicação 322

Avatar
Meus irmãos, o amor é mestre, mas é preciso saber adquiri-lo, porque se adquire dificilmente ao preço dum esforço prolongado; é preciso amar, com efeito, não por um instante, mas até o fim. Qualquer um, até mesmo um celerado, é capaz de um amor fortuito. Meu irmão pedia perdão aos pássaros; isto parece absurdo, mas é justo, porque tudo se assemelha ao oceano, onde tudo se derrama e comunica, toca-se num lugar e isto repercute na outra extremidade do mundo. Admitamos que seja uma loucura pedir perdão aos pássaros, mas os pássaros, e a criança, e cada animal que vos cerca sentir-se-iam mais à vontade, se vós mesmos fôsseis mais dignos do que o sois agora, um pouco que seja. Então rezaríeis aos pássaros, possuídos totalmente pelo amor numa espécie de êxtase, vós lhes rogaríeis que vos perdoassem vossos pecados 322

Inferno
Meus padres, pergunto a mim mesmo: "Que é o inferno?" Defino-o assim: "O sofrimento por não poder mais amar". 325

Ciúme
Tal não é o verdadeiro ciumento. Não se pode imaginar a infâmia e a degradação a que um ciumento é capaz de acomodar-se sem nenhum remorso. E não são sempre almas vis que assim agem. Pelo contrário, embora tendo sentimentos elevados, um amor puro e devotado, pode uma pessoa esconder-se debaixo de mesas, comprar tratantes, prestar-se à mais ignóbil espionagem 380

Ora, que vale tal amor, objeto de uma vigilância incessante? 380

Mas assim que Grúchenhka partia, recomeçava Mítia a suspeitar nela todas as baixezas e perfídias da traição, sem experimentar nenhum remorso. 381

Conceito
Bêbado moralmente 406

Definições psicológicas
Kólia parecia-lhe sempre insensível a seu respeito e acontecia que, numa crise de lágrimas, ela o censurava pela sua frieza. O rapazinho não gostava disso e quanto mais efusões exigiam dele mais a elas se furtava. Mas era contra a sua vontade, provinha isto de seu caráter e não de sua vontade. Sua mãe se enganava; ele a amava, somente, não gostava das "ternuras de novilha", como dizia em sua linguagem de escolar. 503

Natureza e socialismo
— Gosto de observar a realidade, Smúrov — disse de súbito Kólia. — Notaste como os cães se farejam, quando se encontram? É, entre eles, uma lei geral da natureza.
— Sim, uma lei ridícula.
— Não é ridícula, não tens razão. Na natureza, nada há de ridículo, apesar do que dela pense o homem com seus preconceitos. Se os cães pudessem raciocinar e criticar, encontrariam certamente outro tanto de ridículo, se não mais, nas relações sociais das pessoas, seus donos, se não mais, repito-o, porque estou persuadido de que há bem mais tolices entre nós. É a idéia de Rakítin, uma idéia notável. Sou socialista, Smúrov.
— Que é um socialista? — perguntou Smúrov.
— É quando todos são iguais, têm uma opinião comum, não há casamentos, sendo a religião e as leis como convém a cada um. És ainda demasiado jovem para compreender essas questões. 514

Questão estética
Aliás, não é preciso crer que a preocupação com seu rosto e sua estatura o absorvesse por completo. Pelo contrário, por mais vexatórias que fossem as estadas diante do espelho, esquecia-as em breve e por muito tempo, "consagrando-se todo inteiro às idéias e à vida real", como ele próprio definia sua atividade. 519

Os russos e a filosofia
"Os Karamázovi não são canalhas, são filósofos, como todos os verdadeiros russos; mas tu, malgrado teu saber, não és um filósofo, não passas de um labrego". 574

Tudo é permitido
"Mas então, que se tornará o homem, sem Deus e sem imortalidade? Tudo é permitido, por conseqüência, tudo é lícito?" "Não o sabias? Para um homem de talento, tudo é permitido, sabe sempre tirar-se de apertos. 574

Visão sobre os marginais sociais
Pode-se encontrar também nas minas, em um forçado e em um assassino, um coração de homem e entrar em entendimento com ele, porque ali também se pode amar, viver e sofrer! Pode-se reanimar o coração entorpecido de um forçado, cuidar dele, trazer afinal da cova para a luz uma alma grande, regenerada pelo sofrimento, ressuscitar um herói! Ora, há centenas deles e somos todos culpados para com eles. 577

Filosofia e prática: Marx
A vida é fácil para Rakítin: "Ocupa-te antes", dizia-me hoje, "com estender os direitos cívicos ou impedir a alta da carne; dessa maneira, servirás. melhor a humanidade e a amarás mais que com toda a tua filosofia". Ao que lhe respondi: "Tu mesmo, não acreditando em Deus, elevarás o preço da carne se houver oportunidade, e ganharás 1 rublo em vez de 1 copeque". Zangou-se. Com efeito, que é a virtude? Responde-me, Alieksiéi. Não me represento a virtude como um chinês, é pois uma coisa relativa? Ou então, não é relativa? Questão insidiosa! 578

Tudo é permitido
Perguntava-lhe: "Então, tudo é permitido?" Ele franziu a testa: "Fiódor Pávlovitch, nosso pai", disse ele, "era um porco, mas raciocinava certo". Eis suas palavras. 578

Deus e os reacionários
"Ser reacionário", dizia-lhes, "é crer em Deus em nossa época, mas eu, eu sou o diabo". 623

Vida e sofrimento
Sofrem, evidentemente... em compensação, vivem, uma vida real e não imaginária, porque o sofrimento é a vida. Sem o sofrimento, que prazer ofereceria ela? 624

Torturas morais e estrangeirismos
Outrora, havia-os para todos os gostos; agora, é sempre mais o sistema das torturas morais, "os remorsos da consciência" e outras pataratas. Devemos isso à "doçura dos costumes" de vocês. E quem tira proveito disso? Somente os que não têm consciência, porque zombam dos remorsos! Em compensação, as pessoas decentes, que conservaram o sentimento da honra, sofrem... Eis o que acontece com as reformas operadas em terreno mal preparado e copiadas de instituições estrangeiras. São deploráveis! 626

As consequências da não existência de Deus
Uma vez que a humanidade inteira professe o ateísmo (e creio que essa época, à maneira das épocas geológicas, chegará a seu tempo), então, por si mesma, sem antropofagia, a antiga concepção do mundo desaparecerá, e sobretudo a antiga moral. Os homens se unirão para retirar da vida todos os gozos possíveis, mas neste mundo somente. O espírito humano se elevará até um orgulho titânico e isto será a humanidade deificada. Triunfando sem cessar e sem limites da natureza pela ciência e pela energia, o homem por isso mesmo experimentará constantemente uma alegria tão intensa que ela substituirá para ele as esperanças das alegrias celestes. Cada qual saberá que é mortal, sem esperança de ressurreição, e resignar-se-á à morte com uma altivez tranqüila, como um deus. Por altivez, abster-se-á de murmurar contra a brevidade da vida e amará seus irmãos duma maneira desinteressada. O amor só procurará gozos breves, mas o próprio sentimento de sua brevidade reforçar-lhe-á a intensidade tanto quanto outrora ela se disseminava nas esperanças de um amor eterno, além-tumular"... e assim por diante. É encantador!

Medicina e ciência
Deixo de lado a medicina; a ciência» mente, dizem, a ciência se engana, os doutores não souberam distinguir a verdade da simulação 686

Presentismo
Karamázov só vive no momento presente. 692

Amar o pai
A vista dum pai indigno, sobretudo comparado aos de outros meninos, seus condiscípulos, inspira, malgrado seu, a um jovem questões dolorosas. Respondem-lhe banalmente: 'Foi ele quem te gerou, és seu sangue, de modo que deves amá-lo'. O rapaz pensa, malgrado seu: 'Será que ele me amava quando me gerou', pergunta ele, cada vez mais surpreso, 'foi por minha causa que ele me deu a vida? Ele não me conhecia, ignorava mesmo meu sexo, naquele minuto de paixão, talvez aquecido pelo vinho, e só me transmitiu uma inclinação pela bebida, eis todos os seus benefícios... Por que devo amá-lo, pelo simples fato de me ter gerado, a ele que nunca me amou?' 719

Tese
Vale mais absolver dez culpados que condenar um inocente. 721

quarta-feira, 21 de outubro de 2009

Edmund Wilson - Rumo à estação Finlândia

Primeiro livro publicado pela Companhia das Letras, 'Rumo à estação Finlândia' foi sucesso imediato no Brasil. Hoje, passados mais de vinte anos, continua sendo uma obra de referência, talvez a mais importante do escritor americano Edmund Wilson. Estudo crítico e histórico das teorias revolucionárias européias que estabeleceram as bases do socialismo bolchevique, este é um livro impossível de ser enquadrado em uma só categoria, capaz de agradar tanto a um especialista quanto a um não-iniciado. Desde a Revolução Francesa até a Russa, em 1917, Wilson percorre as batalhas intelectuais de um grupo de homens - conspiradores e filósofos, utopistas e niilistas, socialistas e anarquistas -, batalhas que ajudaram a moldar a história do século XX.

O autor nasceu em Red Bank, Nova Jersey, em 1895, e morreu em 1972. Figura decisiva na vida intelectual norte-americana, esteve entre os primeiros a saudar autores como Joyce, Fitzgerald e Hemingway. Crítico ativo até o fim da vida, assinou também várias obras de história das idéias.


WILSON, Edmund. Rumo à estação Finlândia: escritores e atores da história. São Paulo: Cia das Letras, (1986) 1993.

Totalidade
Vico, com a força do seu gênio imaginativo, de extraordinário poder e alcance, lhe permitira apreender pela primeira vez o caráter orgânico da sociedade humana e a importância de reintegrar, através da história, as diversas forças e fatores que compõem a vida humana. Em agosto [de 1820], por ocasião da entrega dos prêmios da escola, Michelet afirma: “Ai daquele que tenta isolar um ramo do saber de outro. (...) Toda ciência é uma: linguagem, literatura e história, física, matemática e filosofia; assuntos que parecem os mais distantes um do outro são na realidade interligados; ou melhor, todos formam um único sistema” (p. 11/12).

História das mentalidades
Porém não se pode entrar na história da humanidade uma vez que ele tenha ocorrido; um homem do século XIX, na verdade, não pode resgatar a mentalidade do século XVI. Não se pode reproduzir a totalidade da história e ao mesmo tempo ater-se às formas e proporções da arte. Não se pode ter interesse no passado e não se interessar pelos acontecimentos presentes sem ter vontade de fazer alguma coisa no sentido de influenciá-los (p. 31).

  • Sistemas imaginários os mais contrários possíveis ao que existia na realidade e tentar construir modelos de tais sistemas, na esperança de que o exemplo fosse imitado. Era isso que a palavra socialismo designava quando começou a circular na França e na Inglaterra por volta de 1835 (p. 100).

Feuerbach
A Idéia Absoluta de Hegel – afirma Feuerbach -, que supostamente se encarnara na matéria com o fim de realizar a razão, não passava de um pressuposto gratuito que Hegel não conseguiu provar. Na verdade, a Idéia Absoluta era apenas um substituto do Verbo feito Carne, e Hegel não era mais do que o último dos grandes apologistas do cristianismo. Esqueçamos a Idéia Absoluta; comecemos a investigar o homem e o mundo tal como os encontramos. Quando o fazemos, torna-se óbvio que as lendas e rituais das religiões são meras manifestações de mentes humanas. Feuerbach conseguira retirar a religião da esfera da imaginação comum em que a colocara Strauss, desvincular o instinto ético da autoconsciência pura em que ele caíra quando Bruno Bauer rejeitou a autoridade das Escrituras, e vincular a religião e a moralidade inexoravelmente aos costumes dos homens. Porém ele ainda acredita na necessidade permanente da religião. Tenta ele próprio criar um substituto para a religião, um culto do amor baseado na sexualidade e na amizade. E imagina uma humanidade abstrata dotada de uma razão comum.

Servidão medieval

Para Engels, parecia que o serviço medieval, que ao menos estava fixo à terra e ocupava uma posição definida na sociedade, estivera em melhor situação que o operário industrial (p. 133).

Aproveitamento de Hegel
O mais importante que Marx e Engels e todos os seus contemporâneos extraíram da filosofia de Hegel foi o conceito de transformação histórica. Ele revelara estar plenamente consciente de que as grandes figuras revolucionárias da história não eram apenas indivíduos extraordinários, que moviam montanhas simplesmente com a força de vontade, e sim agentes através dos quais as forças das sociedade em que eles se inseriam realizavam seus propósitos inconscientes (p. 139).

  • De Saint-Simon [Marx e Engels] aceitaram a descoberta de que a política moderna era simplesmente a ciência da regulamentação da produção; de Fourier, a condenação ao burguês, a consciência do contraste irônico entre o “frenesi especulativo, o espírito do comercialismo que nada poupa” que caracterizavam o reinado do burguês e “as promessas brilhantes do Iluminismo” que os precedeu; de Owen, a consciência de que o sistema fabril teria de ser a raiz da revolução social. Porém viram que o erro dos socialistas utópicos fora imaginar que o socialismo seria imposto à sociedade de cima para baixo, por desinteressados membros das classes superiores. Em meados do século XIX eles já enxergavam com clareza que era impossível para pequenas unidades comunistas por si só conseguirem salvar a sociedade porque esse movimento ignorava o mecanismo da luta de classes (p. 141).
  • Marx elogiara Proudhon por haver submetido “a propriedade privada, que é a base da economia política, (...) à primeira análise decisiva, implacável e ao mesmo tempo científica”. Agora Marx percebia que o axioma “a propriedade é um roubo”, ao referir-se a uma violação da propriedade ele próprio pressupunha a existência de propriedade legítimos (p. 152).
  • Essa arrogância e implacabilidade [de Marx e Engels] eram necessárias para derrubar as ilusões da época (p. 155)
  • Àqueles que falavam de Justiça, Marx e Engels replicavam: “Justiça para quem? No capitalismo, são os proletários que são presos com mais freqüência e os que recebem os castigos mais severos; ao mesmo tempo, como passam fome quando estão desempregados, são eles levados a cometer a maioria dos crimes”. Àqueles que falam de Liberdade, eles replicavam: “Liberdade para quem? Jamais será possível libertar o trabalhador sem restringir a liberdade do proprietário”. Àqueles que falavam em Vida Familiar e Amor – que supostamente estariam sendo destruídos pelo comunismo – eles respondiam que essas coisas, na sociedade da época, só existiam para a burguesia, já que a família proletária fora desmembrada com a utilização de mulheres e menores nas fábricas, levando jovens a fazer amor nos moinhos e minas ou vender seus corpos quando os moinhos e minas se fechavam. Àqueles que falavam do Bem e da Verdade, Marx e Engels retrucavam que jamais saberíamos o que essas palavras queriam dizer até que surgissem moralistas e filósofos que não estivessem mais comprometidos com uma sociedade baseada na exploração, e portanto não tivessem nenhum interesse pessoal na perpetuação da opressão (p. 155).
  • Marx demonstrou que todas as leis eram apenas reflexos de todas as relações sociais, e que, quando mudavam as relações sociais, as leis tornavam-se caducas (p. 166).
  • Para eles [Marx e Engels] adotaram esse princípio, e projetaram sua atuação no futuro, coisa que Hegel não havia feito. Para eles a tese era a sociedade burguesa, que constituíra uma unificação em relação ao regime feudal que se desintegrava; a antítese era o proletariado, que foi gerado pelo desenvolvimento da indústria moderna, mas que depois fora dissociado, através da especialização e do aviltamento, do corpo principal da sociedade moderna, e que um dia teria que se voltar contra ela; a síntese seria a sociedade comunista que resultaria do conflito entre a classe operária e as classes proprietárias e patronais e do controle da indústria pela classe operária, e que representaria uma unidade mais elevada na medida em que harmonizaria os interesses de toda a humanidade (p. 174).
Cabeça para baixo
Escreve Marx no Capital: “Para Hegel, o processo do pensamento que, com o nome de Idéia, ele chega a transformar-se em sujeito independente, é o demiurgo do mundo real, enquanto o mundo real é apenas a sua aparência externa. Para mim, pelo contrário, o ideal é apenas o material após ser transposto e traduzido dentro da cabeça do homem”. Marx e Engels haviam declarado que todas as idéias eram humanas, e que toda idéia estava interligada a alguma situação social específica, que, por sua vez, fora produzida pelas relações entre o homem e condições materiais específicas (p. 174). Marx afirma que a Idéia Hegeliana é um demiurgo; pois este demiurgo continuou a caminhar a seu lado mesmo quando ele imaginava já ter se desvencilhado dele. Marx acreditava ainda na tríade de Hegel: These, Antithese e Synthese; e essa tríade não passava da velha trindade da teologia cristã, a qual os cristãos haviam tomado emprestado de Platão. [...] As concepções dos materialistas dialéticas só se impõem até certo ponto. Sem dúvida, elas permitem que se formule em termos dramáticos a dinâmica de certas transformações sociais; porém é evidentemente impossível aplicá-las a outras. Marx julgava encontrar o princípio hegeliano da “transição da quantidade para a qualidade” tanto na transformação do chefe da guilda medieval em capitalista quanto nas transformações dos compostos. No caso de um exemplo de Bernal – a teoria freudiana da repressão dos desejos – o ciclo dialético, sem dúvida alguma, nada tem de inevitável. O instinto é a tese; a repressão é a antítese; a sublimação é a síntese: até aí, tudo bem. Mas digamos que o paciente não consiga sublimar e enlouqueça, ou se suicide: onde está a conciliação dos opostos na síntese? ( p. 184/185)

A questão do economicismo
Em que sentido era verdade que a economia determinava as relações sociais e que as idéias se derivavam delas? Se as idéias não eram efeitos passivos, então qual a natureza e âmbito de sua atuação? Na verdade, Marx e Engels jamais desenvolveram detalhadamente seu ponto de vista (p. 176). As atividades ideológicas da superestrutura não são consideradas por eles nem simples reflexos da base econômica, nem meras fantasias ornamentais que dela brotam. Esses grupos podem atuar diretamente um sobre o outro, e até mesmo sobre a base sócio-econômica. Exemplo: para Engels as leis referentes à herança evidentemente têm uma base econômica, porque devem corresponder a diversas etapas do desenvolvimento da família; provém seria muito difícil provar que a liberdade de disposições testamentárias existentes na Inglaterra e as restrições legais nesse âmbito vigentes na França podem ser explicadas somente por causas econômicas. Porém esses dois tipos de lei têm efeito sobre o sistema econômico, na medida em que influenciam na distribuição da riqueza (p. 177).

História
Engels no Anti-Dhuring: “Uma vez que ultrapassamos o estágio primitivo do homem, a chamada Idade da Pedra, a repetição das circunstâncias é a exceção e não a regra e, mesmo quando ocorrem tais repetições, elas jamais se dão sob condições exatamente iguais” (p. 179).

  • Quem lê o 18 brumário nunca mais encara a linguagem, as convenções, os conchavos e pretensões dos parlamentos com os mesmos olhos, se antes tinha alguma ilusão a respeito deles. Tais coisas perdem a consistência e a cor, e evaporam diante de nossos olhos. A velha competição por cargos públicos e o velho jogo do debate político parecem tolos e obsoletos; pois agora vemos pela primeira vez, além do jogo de sombras, o conflito de apetites e necessidades que, ainda que os próprios atores o desconheçam em parte, projeta na tela essas magras silhuetas (p. 194).

Curiosidade

Os livros e papéis obedeciam a ele [Marx] como se fossem seus braços e pernas: “são meus escravos”, dizia Marx, “e têm de me servir a meu bel-prazer” (p. 251).

Bakunin versus Marx
A questão central da luta entre os seguidores de Bakunin e os de Marx foi a abolição do direito de herança. Era uma medida que Bakunin exigia com veemência como “uma das condições indispensáveis para a emancipação dos trabalhadores” – talvez por ele estar tentando, sem sucesso, convencer os irmãos a lhe enviarem uma parte dos bens da família. Marx, com sua lógica habitual, argumentava que, como a herança da propriedade privada era apenas uma conseqüência do sistema de propriedade privada, o importante era atacar o sistema em si e não se preocupar com malefícios dele decorrentes (p. 261).

  • A argumentação que Marx faz em defesa do crime no quarto livro do Capital: o crime, diz ele, é produzido pelo criminoso exatamente como “o filósofo produz idéias; o poeta, versos; o professor, manuais”, e sua prática é útil à sociedade porque resolve o problema da população supérflua, ao mesmo tempo em que sua repressão proporciona empregos a muitos cidadãos honrados (p. 277).
  • O que quer dizer exatamente a afirmativa de que o trabalho determina o valor (idéia cujo embrião encontrou em Ricardo e Adam Smith)? Não seria difícil mencionar diversas coisas cujo valor certamente não era determinado pelo trabalho: móveis antigos, quadros renascentistas, o elemento rádio; e, mesmo no caso de artigos manufaturados, estava longe de ser verdade que seu valor no mercado era proporcional à quantidade de trabalho que fora necessária para produzi-los. Para os fabianos ingleses (baseados em Stanley Jevons) elaboraram uma teoria contrária fundamental na demanda: o preço de qualquer mercadoria é determinado pelo seu grau de utilidade para as pessoas que a ela têm acesso, e isto, por sua vez, pode ser considerado o determinante dôo valor do trabalho necessário para produzi-la (p. 282). A verdade é que todas essas teorias são incompletas: os preços reais são produtos de situações muito mais complexas do que qualquer uma dessas fórmulas, e são complicadas por fatores psicológicos que os economistas raramente levam em conta (p. 284).
  • Marx tomou por base que, embora o patrão sempre tivesse se revelado ganancioso, o trabalhador socialista dôo futuro – tendo dado, nas palavras de Engels em Anti-Dhuring, o “salto do reino da necessidade para o reino da liberdade” – passaria a agir sempre em prol do bem da humanidade. A classe dominante da era capitalista jamais fizera por vontade própria outra coisa que não roubar os pobres em benefício do seu próprio bem-estar; mas a classe dominante da ditadura do proletariado jamais pensaria em abusar de seu poder. Em edições posteriores do manifesto, Engels acrescentou uma nota na qual explicava que em 1847 pouco se sabia a respeito do comunismo primitivo. Depois, ele e Marx podiam fundamentar sua fé no futuro em uma espécie de Idade do Ouro de propriedade comunista e relações fraternais que teria existido no passado. Em A origem da família, da propriedade privada e do Estado, Engels tenta demonstrar que a “singela grandeza moral” da “velha sociedade pagã sem classes” fora “minada e destruída pelos meios mais desprezíveis: roubo, violência, astúcia, traição”, e que, em conseqüência, o “novo sistema de classes” fora “instituído pelos impulsos mais mesquinhos: inveja vulgar, volúpia brutal, avareza sórdida, roubo egoísta da riqueza comum” (p. 287). Ora, isso levanta o mesmo tipo de pergunta em relação a esse passado comunista, que o domínio do proletariado coloca em relação ao futuro socialista. De que modo os membros da espécie humana, antes felizes e bons, vieram a se tornar tão infelizes e maus? Serão apenas impulsos “vulgares, brutais e egoístas” que deram origem à sociedade de classes? A questão do futuro é importante. Por que motivo devemos supor que os impulsos brutais e egoístas do homem hão de desaparecer numa ditadura socialista? (p. 288)
Direitos
Marx passaria o resto da vida afirmando que todo ser humano era dotado do direito à vida, à liberdade e à busca da felicidade (p. 290). Porém não há, em última análise, nenhuma maneira de provar que eles existem, exatamente como não como provar que para Deus todas as almas são inevitavelmente inferiores às classes dominantes (p. 290).

Ontologia reformista
Antes de tornar-se dominante, a burguesia já possuía propriedades e cultura e bastava-lhe defender seu direito a tais coisas; porém o proletariado inglês teria de lutar muito para consegui-las, e, quando um proletário excepcionalmente tinha sucesso, ele adquiria junto com elas uma visão de classe média. Quando, através das negociações sindicais, o proletariado obtinha melhores salários e naus horas de lazer, ele não pensava numa revolução mundial; quando gerava um líder parlamentar de valor, este era comprado ou absorvido pela classe governante. Além disso, Marx não era a pessoa indicada para aceitar, para nem sequer imaginar, a psicologia dos trabalhadores depois que seu padrão de vida tivesse melhorado um pouco (p. 305).

O nome de Trotsky
Lev Davidovitch fugiu em agosto de 1902. Quando chegou na ferrovia siberiana, as amigos lhe entregaram uma mala cheia de roupas e um passaporte falso, que ele preencheu com o primeiro nome que lhe veio à cabeça - o nome do carcereiro-chefe da prisão de Odessa, Trotsky (p. 386).

Fim do Marxismo?
Então nada restará mais nada do marxismo? Não haverá idéias marxistas básicas que ainda possam ser aceitas como verdadeiras? Examinei o marxismo acima, arriscando-me a cair na banalidade, em termos de suas origens históricas, porque me parece que as generalidades cambiantes em que a mente liberal continua viciada ainda precisam ser corrigidas constantemente pelos fatos da história do socialismo. Mas é claro que há uma técnica comum ao marxismo de Marx e Engels, ao de Lenin e Trotsky, uma técnica que ainda podemos utilizar com proveito: a técnica de analisar fenômenos políticos em termos sócio-econômicos. O que havida de verdadeiro nas pretensões de Marx e Engels de fazer o socialismo algo “científico” era o fato de terem eles sido os primeiros a tentar, de modo intensivo, estudar as causas econômicos de modo objetivo. Isto, naturalmente, não quer dizer que devamos tentar encontrar a chave dos eventos de nossa época nas conclusões que estes homens de um outro século tiraram com base nos eventos do seu tempo. O método marxista só leva a resultados válidos quando aplicado de modo novo por homens realistas o bastante para verem com seus próprios olhos – e corajosos o bastante para pensarem com suas próprias cabeças. Porém, feitas todas essas considerações, resta algo mais importante que é comum a todos os grandes marxistas: o desejo de abolir os privilégios de classe baseados no berço e nas diferenças de renda: a vontade de estabelecer uma sociedade em que o desenvolvimento superior de alguns não seja custeado pela exploração – ou seja, pela degradação proposital – de outrem: uma sociedade que seja homogênea e cooperativa, algo bem diverso de nossa sociedade comercial, e que seja dirigida pelas mentes criativas conscientes de seus membros, dando o melhor de si. Porém essa é uma meta pela qual devemos trabalhar à luz de nossa própria imaginação e com a ajuda de nosso próprio bom senso. As fórmulas das diversas seitas marxistas, inclusive a que é comum a todas elas, o dogma da dialética, não são mais merecedoras do status de sagradas escrituras do que as fórmulas de outras crenças. Para realizarmos essa tarefa, precisaremos exercitar ao mesmo tempo – constantemente nos adaptando às diferentes circunstâncias – nossa razão e nosso instinto.

quinta-feira, 15 de outubro de 2009

José Arbex Jr - Showrnalismo

O livro em questão - Showrnalismo - me foi emprestado por uma jornalista e ex-colega da faculdade de História. A proximdade da obra com temas ligados à disciplina de história é impressioante. O autor propõe interessantes discussões acerca de temas como o conceito de fato e a metodologia da história oral. No aspecto jornalístico, Arbex reflete sobre o modo de organização dos telejornais, aborda fundamentos teóricos da profissão e nos mostra como a mídia "constrói" um fato. Enfim, é uma obra de grande interesse para aqueles que possuem o costume de ler jornais e ver programas de notícias diariamente. Abaixo, um breve resumo de alguns pontos apresentados pelo livro.

ARBEX JR, José. Showrnalismo: a notícia como espetáculo. São Paulo: Casa Amarela, 2001.

Confusão do ver com saber
À luz da tradição cultural que identifica “ver” com “saber”, é coerente e, até esperado, que o desenvolvimento tecnológico dos meios de registro e comunicação, em particular a partir do final do século XIX (fotografia, cinema, televisão, Internet), tenha reforçado a importância da percepção visual. Mas quem vê, vê o que? Da psicanálise e das ciências sociais sabemos, hoje, que o olhar é condicionado pela cultura, mas também – talvez, sobretudo – por uma série quase infinita de mecanismos inconscientes (preconceitos, afetos, traumas, automatismos), a imensa maioria forjada na primeira infância. (35).

Memória e história oral
Reconhecemos que a história oral está longe de ser uma história espontânea, não é a existência vivida em estado puro, e que os relatos produzidos pela história oral devem estar sujeitos ao mesmo trabalho crítico das outras fontes que os historiadores costumam consultar (...) Para complicar ainda mais a questão, infelizmente não possuímos dados muito satisfatórios sobre como funciona a memória humana. Como é, por exemplo, que lembramos de certos tipos de experiência com precisão e esquecemos de outros? Como é que o envolvimento emocional a letra as lembranças? Afinal, como é que a memória se organiza e se modifica? (...) A memória não é um fenômeno exclusivamente individual, mas resulta de determinações sociais complexas. Pensamos, lembramos e exprimimo-nos em formas sociais e culturalmente determinadas – como, aliás, os antropólogos reconheceram faz bastante tempo. HAKK, Michael M. História oral: os riscos da inocência. In: CUNHA, Maria C. P. da. O direito à memória - patrimônio histórico e cidadania. P. 157. (35).

Questões teóricas de trabalho
Sei correr o risco de cair em “armadilhas” e impropriedades conceituais, ainda mais quando se sabe que vários dos autores citados mantiveram entre si fortes polêmicas teóricas. Mas esse é um risco inevitável, dado que o próprio ao objeto deste estudo o seu caráter fragmentário, elástico e fluido. Não vejo como abarcá-lo adotando um método de análise filosoficamente “homogêneo” ou “puro”. (39/40).

A costura feita pelos telejornais
O que importa, nos atuais programas de telejornalismo, é o impacto da imagem, assim como o ritmo de sua transmissão. Como no videoclipe, uma sucessão de imagens é “costurada” de maneira aparentemente aleatória, mas que em seu conjunto reforçam uma certa mensagem. (...) No caso do telenoticiário, as imagens reiteram uma certa percepção do mundo (mulheres com véu no Islã, negros famintos na África, “bandidos” negros etc.). O que se fixa, na memória do telespectador, são flashes. (52)

O objetivo da publicidade
Se no passado a publicidade tinha como objetivo vender produtos, no mundo contemporâneo ela estabelece modelos a serem seguidos, padrões físicos, estéticos, sensuais e comportamentais. (60).

Contracultura
Os movimentos políticos e culturais da juventude, no final dos anos sessenta, expressaram esse “mal-estar na cultura”. O trinômio sexo, drogas e rock’n’roll sintetizava sua aspiração a uma felicidade que não poderia ser mais adiada em benefício de uma sociedade socialista, que seria constituída em algum futuro incerto, nem condicionada pelo tamanho da conta bancária. O problema era retirar o indivíduo de seu estado de solidão e alienação e recuperar (ou, pela primeira vez, criar de fato) o prazer de estar vivo. Já estavam colocados então, plenamente, o drama da solidão dos indivíduos na sociedade de massas, os impasses, equívocos e clichês no processo de comunicação entre indivíduo e sociedade. (70)

Anarquistas, mesmo quando reconheciam diferenciações entre as várias correntes marxistas, criticavam o “autoritarismo” que, segundo eles, seria inerente às idéias de “partido dirigente” e de “vanguarda revolucionária”, e preconizavam a destruição do Estado – tanto o soviético como o capitalista, pouco importa. A crítica anarquista associava-se, em certo sentido, aos movimentos de jovens que nos anos sessenta agitavam o trinômio “sexo, drogas e rock’n’roll”, descartando o jogo polarizado das ideologias. (222)

As máquinas da imagem (a televisão, o computador, as câmaras portáteis de filmar, as máquinas fotográficas etc.) permitem que todas as atividades do cotidiano sejam transportadas para as telas e transmitidas por redes mundiais de informações (como a internet); os radares “inteligentes”, as câmaras de vigilância contra roubos nas lojas, os sistemas eletrônicos de segurança em bancos e zonas de segurança militar transformam a imagem em dígitos; os códigos de barra dos cartões de crédito, os sistemas alfanuméricos de identificação, a rede de informações sobre o crédito pessoal transformam a vida em um feixe de dados. A cada momento, e em todos os momentos, algo nos diz que fazemos parte de um imenso fluxo digital, de um gigantesco banco de dados. (71)

Definição de linguagem
(...) A linguagem não se reduz a um saber instrumental idiomático, é uma prática, social e historicamente determinada e determinante. (82)

Conceito e realidade
Consideramos “real” e “natural” o universo definido pela linguagem. Identificamos as criações da linguagem com as da própria natureza e acabamos tomando umas pelas outras. Não há uma “linguagem total”, um sistema de códigos que, abarcando tudo aquilo que o ser humano produziu como linguagem, conseguisse o máximo de aproximação entre a própria linguagem e o mundo. (85/86).

Tacocracia
Em um mundo em que a informação existe em abundância, para todos, tanto a rapidez como a eficácia na capacidade de obter uma informação exclusiva e na de disseminá-la adquiriram uma urgência dramática, acirrando ainda mais a competição entre os vários veículos de comunicação de massa. Ser mais rápido tornou-se uma demonstração de prestígio, de poder financeiro e político. É por essa razão que toda a produção da mídia passa a ser orientada sob o signo da velocidade (não raro, da precipitação) e da renovação permanente. (88)

A novidade
Mas a “exaltação da novidade” cria outro paradoxo: a produção de uma quantidade brutal e incessante de informação também produz a “amnésia permanente”. É claro: se o que interessa é a “novidade”, e essa é produzida industrialmente - a cada dia, hora ou minuto -, o telespectador/leitor é convidado a abandonar qualquer reflexão sobre determinado evento, para sempre se entregar o “novo”. (89).

Fatos

Capítulo: “O fato como ele aconteceu”

Os fatos, transformados em notícia, são descritos como eventos autônomos, completos em si mesmos. (103).

Exagerando ao extremo aquilo que dizia Nietzsche – o mundo é cognoscível, mas diversamente interpretável, segundo as necessidade e pulsões de cada intérprete -, alguns pensadores chegam a abolir o próprio mundo, que teria sido substituído pelo seu “simulacro” (caso das já comentadas hipérboles de Baudrillard). (106) NIETZSCHE, Friedrich. Nachgelasse Fragmente 1886-1887. IN: GOMES, Wilson. Verdade e perspectiva (a questão da verdade e o fato jornalístico). P. 63.

O Muro de Berlim caiu em 9 de novembro de 1989. Tal fato ocorreu, mesmo que se discorde quanto à avaliação das causas que produziram a queda do Muro. Mas é igualmente insustentável que tal fato possa ser “capturado objetivamente” e retransmitido “fielmente” ao público, como se o jornal fosse um “espelho da realidade”. Sabemos, da mecânica quântica, que o olhar do observador altera a trajetória até mesmo de um elétron. Não apenas o olhar do observador é seletivo quanto ao evento presenciado, como ao relatar um evento o observador seleciona, hierarquiza, ordena as informações expostas, fazendo aí interferir as suas estratégias de narração. (106/107).

Fatos existem, mas não como eventos “naturais”; eles se revelam ao observador – e são, eventualmente, por ele construídos -, segundo o acervo de conhecimentos e o instrumental psicológico e analítico que por ele podem ser mobilizados. Fatos existem, mas só podemos nos referir a eles como construções da linguagem. Descrever um fato é, ao mesmo tempo, interpreta-lo, estabelecer sua gênese, seu desenvolvimento e possíveis desdobramentos, isola-lo, enfim, como um ato, uma unidade dramática. (107)

O observador designa o que é um fato, mas o faz limitado por contextos econômicos, culturais, sociais, ideológicos, políticos, históricos, psicológicos e por sua própria competência discursiva, colocada em jogo em uma disputa de discursos e saberes, assim estabelecendo uma relação de poder simbólico – isto é, uma relação política, no sentido mais amplo do termo. (107)

O narrador (historiador, jornalista, cientista político) escolhe e singulariza determinado fato, motivado por aquilo que pretende, estrategicamente, demonstrar. (...) Mas, se é verdade que a escolha de um evento e de um determinado ponto de vista para analisar o evento depende integralmente do observador, isso não significa que ele tem o poder de alterar livremente os fatos.

Os fatos escolhidos por determinado narrador não existem isoladamente, mas são resultado de uma série de eventos. (O trabalho jornalístico ou o do historiador) será o de explicar, da melhor maneira possível, o encadeamento dos eventos: nenhuma interpretação poderá, com legitimidade, defender a tese de que foi a destruição de Hiroxima e Nagasáqui que iniciou a Segunda Guerra. Se não há uma única “verdade histórica”, isso não significa que qualquer versão seja aceitável como “verdadeira”. (108)

Mesmo a frase mais simples sobre o evento mais “objetivo” – algo como “choveu ontem” – terá de ser diagramada na página do jornal. A escolha do local da página onde será dada a notícia depende de uma interpretação, de uma hierarquização de outras notícias em relação a esta (ou seja, de um “comentário” plástico, não-verbal, sobre um acontecimento em dada localidade e que tornou importante o fato de que “choveu ontem”). A concepção de “objetividade sustentada pelo manual, quando articulada com as definições de “fato” e “notícia”, revela-se expressão de um discurso técnico e tecnicista, para o qual descrever “o fato real” é decompô-lo em suas partes mais elementares. (162)

Essa troca de impressões – repleta de acidentes, de acontecimentos causais, de trocas e olhares, de relações não-verbais – acabará formando a convicção mais profunda e duradoura em relação a determinado evento. Ninguém pretende afirmar, com isso, que para conhecer os processos históricos é absolutamente necessário ou suficiente vivê-los pessoalmente. Nenhum de nós viveu no Egito dos faraós, mas temos uma razoável certeza de que o que sabemos sobre ele é verossímil, porque podemos entender o mundo que os egípcios criavam por meio da linguagem, e só podemos entendê-lo porque também criamos o nosso mundo da mesma forma. (193)

quarta-feira, 14 de outubro de 2009

Eric Hobsbawm - Sobre História

Para inaugurar este blog, apresento aqui um pequeno resumo do livro Sobre História, do historiador Eric Hobsbawm. Nesta coleção de ensaios, ele reflete sobre a teoria e a prática da disciplina que o tornou um dos maiores intelectuais contemporâneos. Nas suas reflexões sobre o papel do historiador, Hobsbawm analisa problemas como as identidades nacionais na Europa, as relações entre história e economia, as "modas" da historiografia contemporânea, a assimilação pós-moderna da narrativa historiográfica, e a noção de progresso no conhecimento histórico.

Em especial, para aqueles que pretendem ler a obra no futuro, que examinem cuidadosamente a forma como o historiador inglês retoma, no Prefácio, dois temas centrais nas discussões propostas no livro: a questão da verdade na história e o problema da abordagem marxista da história.

Enfim, são reflexões de quem se dedica há cinqüenta anos ao ofício de historiador e de um intelectual que, naturalmente, aproveitou as conferências para explicitar as suas concepções teóricas e metodológicas. Sem dúvida, Sobre história é uma obra fundamntal para aqueles que se dedicam ao estudo da disciplina.

HOBSBAWM, Eric. Sobre história. Tradução de Cid Knipel Moreira. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.



Prefácio
Ponto de partida do historiador
Ponto do qual o historiador deve partir é a distinção fundamental entre fato comprovável e ficção. Aquilo que o historiador investiga é real. p. 8.

1. Dentro e fora da História

América Latina

A história dos países atrasados nos séculos 19 e 20 é a história da tentativa de alcançar o mundo mais avançado por meio de sua imitação (ver Borón). p. 15.

História como local para busca de um passado de glória
O passado é um elemento essencial, talvez o elemento essencial nas ideologias. Se não há nenhum passado satisfatório, sempre é possível inventá-lo. O passado fornece um pano de fundo mais glorioso a um presente que não tem muito o que comemorar. p. 17.

História como fonte para criação de mito
Mito e invenção são essenciais à política de identidade pelo qual grupos de pessoas ao se definirem hoje por etnia, religião ou fronteiras nacionais passadas ou presentes, tentam encontrar alguma certeza em um mundo incerto e instável, dizendo: "Somos diferentes e melhores do que os outros". p. 19.

2. O sentido do passado

Sociedades tradicionais

A crença de que a sociedade tradicional seja estática e imóvel é um mito da ciência social vulgar. Até um certo ponto de mudança ela pode permanecer "tradicional": o molde do passado continua a modelar o presente, ou assim se imagina. p. 25.

O domínio do passado não implica uma imagem de imobilidade social. É compatível com visões cíclicas de mudanças. É incompatível com a idéia de progresso contínuo. p. 25.

Utopia
A utopia é por natureza, uma situação estável ou auto-reprodutora, e seu a-historicismo implícito só pode ser evitado por aqueles que se recusam a descrevê-la. p. 31.

3. O que a história tem a dizer-nos sobre a sociedade contemporânea ?

O futuro

Pensar sobre o que vem acontecendo: e se a maioria da população não for mais necessária para a produção? Do que se mantém? Previdência. O centro da questão é a economia de mercado. p. 45.

História como autojustificação
A história como inspiração e ideologia tem uma tendência embutida a se tornar mito de autojustificação. p. 48.

4. A história e a previsão do futuro

Previsão sobre o futuro

Toda a previsão sobre o mundo real repousa, em grande parte, em algum tipo de inferência sobre o futuro a partir daquilo que aconteceu no passado. p. 49.

Perguntas possíveis
Pergunta-se o que acontecerá, mas não quando acontecerá. p. 62.

5. A história progrediu?

Progressos na história

A história se afastou da descrição e da narrativa e se voltou para a análise e a explicação; da ênfase no singular e individual, para o estabelecimento de regularidades e generalização. De certo modo, a abordagem tradicional foi virada de cabeça para baixo. Tudo isso constitui progresso? Sim, constitui, de um tipo modesto. p. 75.

• Aproximação com as outras ciências também tem havido. p. 76.

Defesa do marxismo
Acredito ser o marxismo uma abordagem muito melhor da história porque está mais visivelmente atento do que as outras abordagens àquilo que os seres humanos podem fazer enquanto sujeitos e produtores da história, bem como àquilo que, enquanto objetos, não podem. E, por falar nisso, é a melhor abordagem porque, como virtual inventor da sociologia do conhecimento, Marx elaborou também uma teoria sobre como as idéias dos próprios historiadores tendem a ser afetadas pelo seu ser social. p. 77.

6. Da história social à história da sociedade

História das idéias

A velha moralidade de história das idéias, que isolava as idéias escritas de seu contexto humano e acompanhava a sua adoção de um escritor para outro, também é possível desde que se queira fazer esse tipo de coisa. P. 87.

7. Historiadores e economistas: 1

Acumulação capitalista atual

Na visão de uma fase transnacional do capitalismo, a grande empresa, e não o Estado-nação, é a instituição por meio da qual se manifesta a dinâmica da acumulação capitalista. P. 117

Concentração econômica

O mero reconhecimento por Marx de uma tendência secular à livre competição para gerar concentração econômica foi de enorme fertilidade. p. 120.

8. Historiadores e economistas: 2


Generalizações
As generalidades, apesar de sofisticadas, são insuficientes para compreender qualquer estágio histórico real da produção ou a natureza de sua transformação. p. 124.

Modos de produção combinados
Toda transição de uma formação socioeconômica para outra – digamos da sociedade feudal para a capitalista – deve em algum estágio consistir de uma mistura dessa ordem. p. 134.

9. Engajamento

Extremos de um cientista

Em um extremo, há a proposição pouco controversa de que o cientista, que é fruto de sua época, reflete os preconceitos ideológicos e outros de seu ambiente e experiências e interesses sociais e específicos. No outro, há a concepção de que não devemos meramente nos dispor a subordinar nossa ciência às exigências de alguma organização ou autoridade, mas até promover ativamente essa subordinação. p.139.

Intelectuais engajados
O mais decisivo é que os intelectuais engajados podem ser os únicos dispostos a investigar problemas ou assuntos que (por razões ideológicas, ou outras) o resto da comunidade intelectual não consegue considerar. p. 148.

Historiadores enfiados nos seus gabinetes: em favor do engajamento
É nessa situação que o engajamento político pode servir para contrabalançar a tendência crescente de olhar para dentro, em casos extremos, o escolasticismo, a tendência a desenvolver engenhosidade intelectual por ela mesma, o auto-isolamento da academia. p. 154.

10. O que os historiadores devem a Karl Marx?

Erros e acertos de Marx

É correto que o modelo deva ser debatido e, em particular, que os critérios usuais de verificação histórica sejam aplicados ao mesmo. É inevitável que certas partes, baseadas em evidência insuficiente ou enganosa, devam ser abandonadas, como, por exemplo, no campo do estudo das sociedades orientais, onde Marx combina uma visão profunda com posições equivocadas sobre, digamos, a estabilidade interna de tais sociedades. Apesar disso, o argumento central deste ensaio é o de que o principal valor de Marx para os historiadores hoje reside em suas proposições sobre a história enquanto distintas de suas proposições sobre a sociedade em geral. p. 162.

Significado de “base”
Quase não é necessário dizer que a “base” não consiste da tecnologia ou economia, mas da “totalidade dessas relações de produção”, isto é, a organização social em seu sentido mais amplo quando aplicada a um dado nível das forças materiais de produção.

Contribuição de Marx
A ênfase de Marx na história como dimensão necessária talvez seja mais essencial do que nunca. P. 163.

História como progresso
O conceito de progresso, característico também do pensamento do século XIX, inclusive no de Marx. P. 163-164.

11. Marx e a história

Em história não existe “se”

O que aconteceu era inevitável porque não aconteceu outra coisa; portanto, o que mais poderia ter acontecido é uma questão acadêmica. P. 175.

A direção inelutável ao socialismo
Se é possível demonstrar que em outras sociedades não houve nenhuma tendência ao crescimento das forças materiais, ou que seu crescimento foi controlado, desviado ou de outro modo impedido, mediante a força da organização social e da superestrutura, de provocar a revolução no sentido contido no Prefácio de 1859, então por que o mesmo não deveria ocorrer na sociedade burguesa? P. 178.

Conceitos de sociedade e modo de produção em Marx
“Sociedade” é um sistema de relações humanas, ou, para ser mais exato, de relações entre grupos humanos. O conceito de “modo de produção” serve para identificar as forças sociais que orientam o alinhamento desses grupos – o que pode ser feito de múltiplas formas, dentro de um certo limite, em diferentes sociedades. P. 179.

• A lista de MPs de Marx não visa constituir uma sucessão cronológica unilinear. P. 179.

12. Todo povo tem história

13. A história britânica e os “Annales”: um comentário

14. A Volta da narrativa

Ampliação do campo da história como disciplina

Quanto mais ampla a classe de atividades humanas aceita como interesse legítimo do historiador, quanto mais claramente entendida a necessidade de estabelecer conexões sistemáticas entre elas, maior a dificuldade de alcançar uma síntese. P. 204.

Falso debate do micro e do macro
Não há nada de novo em preferir olhar o mundo por meio de um microscópio em lugar de um telescópio. Na medida em que aceitemos que estamos estudando o mesmo cosmo, a escolha entre micro e macrocosmo é uma questão de selecionar a técnica apropriada. P. 206.

15. Pós-modernismo na floresta

16. A história de baixo para cima

História oral e memória

A questão é que a memória é menos uma gravação que um mecanismo seletivo, e a seleção, dentro de certos limites, é constantemente mutável. P. 221.

Uma boa parte da história dos movimentos populares é como vestígio do antigo arado. Poderia parecer extinto para sempre com os homens que aravam o campo muitos séculos atrás. Mas todo aerofotogrametrista sabe que, com certa luz e determinado ângulo de visão, ainda se pode ver a sombra de montes e sulcos há muito esquecidos. P. 224.

17. A curiosa história da Europa


18. O presente como história

Influência do presente

E quando não escrevemos sobre a Antiguidade clássica ou o século XIX, mas sobre o nosso próprio tempo, é inevitável que a experiência pessoal desses tempos modelem a maneira como os vemos, e até como avaliamos a evidência à qual todos nós, não obstante nossas opiniões, devemos recorrer e apresentar. P. 245.

19. Podemos escrever a História da Revolução Russa

20. Barbárie: Manual do usuário

Banalidade da barbárie

O que torna as coisas piores, o que sem dúvida as tornará piores no futuro, é o constante desmantelamento das defesas que a civilização do Iluminismo havia erigido contra a barbárie, e que tentei esboçar nesta palestra. O pior é que passamos a nos habituar ao desumano. Aprendemos a tolerar o intolerável. P. 279

21. Não basta a história da identidade

História nacional construída

As nações são entidades historicamente novas fingindo terem existido por muito tempo. É inevitável que a versão nacionalista de sua história consista de anacronismo, omissão, descontextualização e, em casos extremos, mentiras. Em um grau menor, isso é verdade para todas as formas de história de identidade, antigas ou recentes. P. 285.

Destruidor de mitos nas escolas
A terceira limitação na função dos historiadores como eliminador de mitos é ainda mais óbvia. No curto prazo, estão impotentes contra os que optam por acreditar no mito histórico, principalmente se sustentam poder político, o que, em muitos países, e especificamente nos numerosos Estados novos, envolve controle sobre o que ainda é o canal mais importante para comunicar informações históricas, as escolas. E convém nunca esquecer que a história – principalmente história nacional – ocupa um lugar importante em todos os sistemas de educação pública. P. 290

Responsabilidades do historiador
Essas limitações não diminuem a responsabilidade política do historiador, que repousa, acima de tudo, no fato, já notado acima, de que os historiadores são produtores básicos da matéria prima que é convertida em propaganda e mitologia. P. 290.

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P.S. Em negrito estão os títulos dos capítulos