quinta-feira, 15 de outubro de 2009

José Arbex Jr - Showrnalismo

O livro em questão - Showrnalismo - me foi emprestado por uma jornalista e ex-colega da faculdade de História. A proximdade da obra com temas ligados à disciplina de história é impressioante. O autor propõe interessantes discussões acerca de temas como o conceito de fato e a metodologia da história oral. No aspecto jornalístico, Arbex reflete sobre o modo de organização dos telejornais, aborda fundamentos teóricos da profissão e nos mostra como a mídia "constrói" um fato. Enfim, é uma obra de grande interesse para aqueles que possuem o costume de ler jornais e ver programas de notícias diariamente. Abaixo, um breve resumo de alguns pontos apresentados pelo livro.

ARBEX JR, José. Showrnalismo: a notícia como espetáculo. São Paulo: Casa Amarela, 2001.

Confusão do ver com saber
À luz da tradição cultural que identifica “ver” com “saber”, é coerente e, até esperado, que o desenvolvimento tecnológico dos meios de registro e comunicação, em particular a partir do final do século XIX (fotografia, cinema, televisão, Internet), tenha reforçado a importância da percepção visual. Mas quem vê, vê o que? Da psicanálise e das ciências sociais sabemos, hoje, que o olhar é condicionado pela cultura, mas também – talvez, sobretudo – por uma série quase infinita de mecanismos inconscientes (preconceitos, afetos, traumas, automatismos), a imensa maioria forjada na primeira infância. (35).

Memória e história oral
Reconhecemos que a história oral está longe de ser uma história espontânea, não é a existência vivida em estado puro, e que os relatos produzidos pela história oral devem estar sujeitos ao mesmo trabalho crítico das outras fontes que os historiadores costumam consultar (...) Para complicar ainda mais a questão, infelizmente não possuímos dados muito satisfatórios sobre como funciona a memória humana. Como é, por exemplo, que lembramos de certos tipos de experiência com precisão e esquecemos de outros? Como é que o envolvimento emocional a letra as lembranças? Afinal, como é que a memória se organiza e se modifica? (...) A memória não é um fenômeno exclusivamente individual, mas resulta de determinações sociais complexas. Pensamos, lembramos e exprimimo-nos em formas sociais e culturalmente determinadas – como, aliás, os antropólogos reconheceram faz bastante tempo. HAKK, Michael M. História oral: os riscos da inocência. In: CUNHA, Maria C. P. da. O direito à memória - patrimônio histórico e cidadania. P. 157. (35).

Questões teóricas de trabalho
Sei correr o risco de cair em “armadilhas” e impropriedades conceituais, ainda mais quando se sabe que vários dos autores citados mantiveram entre si fortes polêmicas teóricas. Mas esse é um risco inevitável, dado que o próprio ao objeto deste estudo o seu caráter fragmentário, elástico e fluido. Não vejo como abarcá-lo adotando um método de análise filosoficamente “homogêneo” ou “puro”. (39/40).

A costura feita pelos telejornais
O que importa, nos atuais programas de telejornalismo, é o impacto da imagem, assim como o ritmo de sua transmissão. Como no videoclipe, uma sucessão de imagens é “costurada” de maneira aparentemente aleatória, mas que em seu conjunto reforçam uma certa mensagem. (...) No caso do telenoticiário, as imagens reiteram uma certa percepção do mundo (mulheres com véu no Islã, negros famintos na África, “bandidos” negros etc.). O que se fixa, na memória do telespectador, são flashes. (52)

O objetivo da publicidade
Se no passado a publicidade tinha como objetivo vender produtos, no mundo contemporâneo ela estabelece modelos a serem seguidos, padrões físicos, estéticos, sensuais e comportamentais. (60).

Contracultura
Os movimentos políticos e culturais da juventude, no final dos anos sessenta, expressaram esse “mal-estar na cultura”. O trinômio sexo, drogas e rock’n’roll sintetizava sua aspiração a uma felicidade que não poderia ser mais adiada em benefício de uma sociedade socialista, que seria constituída em algum futuro incerto, nem condicionada pelo tamanho da conta bancária. O problema era retirar o indivíduo de seu estado de solidão e alienação e recuperar (ou, pela primeira vez, criar de fato) o prazer de estar vivo. Já estavam colocados então, plenamente, o drama da solidão dos indivíduos na sociedade de massas, os impasses, equívocos e clichês no processo de comunicação entre indivíduo e sociedade. (70)

Anarquistas, mesmo quando reconheciam diferenciações entre as várias correntes marxistas, criticavam o “autoritarismo” que, segundo eles, seria inerente às idéias de “partido dirigente” e de “vanguarda revolucionária”, e preconizavam a destruição do Estado – tanto o soviético como o capitalista, pouco importa. A crítica anarquista associava-se, em certo sentido, aos movimentos de jovens que nos anos sessenta agitavam o trinômio “sexo, drogas e rock’n’roll”, descartando o jogo polarizado das ideologias. (222)

As máquinas da imagem (a televisão, o computador, as câmaras portáteis de filmar, as máquinas fotográficas etc.) permitem que todas as atividades do cotidiano sejam transportadas para as telas e transmitidas por redes mundiais de informações (como a internet); os radares “inteligentes”, as câmaras de vigilância contra roubos nas lojas, os sistemas eletrônicos de segurança em bancos e zonas de segurança militar transformam a imagem em dígitos; os códigos de barra dos cartões de crédito, os sistemas alfanuméricos de identificação, a rede de informações sobre o crédito pessoal transformam a vida em um feixe de dados. A cada momento, e em todos os momentos, algo nos diz que fazemos parte de um imenso fluxo digital, de um gigantesco banco de dados. (71)

Definição de linguagem
(...) A linguagem não se reduz a um saber instrumental idiomático, é uma prática, social e historicamente determinada e determinante. (82)

Conceito e realidade
Consideramos “real” e “natural” o universo definido pela linguagem. Identificamos as criações da linguagem com as da própria natureza e acabamos tomando umas pelas outras. Não há uma “linguagem total”, um sistema de códigos que, abarcando tudo aquilo que o ser humano produziu como linguagem, conseguisse o máximo de aproximação entre a própria linguagem e o mundo. (85/86).

Tacocracia
Em um mundo em que a informação existe em abundância, para todos, tanto a rapidez como a eficácia na capacidade de obter uma informação exclusiva e na de disseminá-la adquiriram uma urgência dramática, acirrando ainda mais a competição entre os vários veículos de comunicação de massa. Ser mais rápido tornou-se uma demonstração de prestígio, de poder financeiro e político. É por essa razão que toda a produção da mídia passa a ser orientada sob o signo da velocidade (não raro, da precipitação) e da renovação permanente. (88)

A novidade
Mas a “exaltação da novidade” cria outro paradoxo: a produção de uma quantidade brutal e incessante de informação também produz a “amnésia permanente”. É claro: se o que interessa é a “novidade”, e essa é produzida industrialmente - a cada dia, hora ou minuto -, o telespectador/leitor é convidado a abandonar qualquer reflexão sobre determinado evento, para sempre se entregar o “novo”. (89).

Fatos

Capítulo: “O fato como ele aconteceu”

Os fatos, transformados em notícia, são descritos como eventos autônomos, completos em si mesmos. (103).

Exagerando ao extremo aquilo que dizia Nietzsche – o mundo é cognoscível, mas diversamente interpretável, segundo as necessidade e pulsões de cada intérprete -, alguns pensadores chegam a abolir o próprio mundo, que teria sido substituído pelo seu “simulacro” (caso das já comentadas hipérboles de Baudrillard). (106) NIETZSCHE, Friedrich. Nachgelasse Fragmente 1886-1887. IN: GOMES, Wilson. Verdade e perspectiva (a questão da verdade e o fato jornalístico). P. 63.

O Muro de Berlim caiu em 9 de novembro de 1989. Tal fato ocorreu, mesmo que se discorde quanto à avaliação das causas que produziram a queda do Muro. Mas é igualmente insustentável que tal fato possa ser “capturado objetivamente” e retransmitido “fielmente” ao público, como se o jornal fosse um “espelho da realidade”. Sabemos, da mecânica quântica, que o olhar do observador altera a trajetória até mesmo de um elétron. Não apenas o olhar do observador é seletivo quanto ao evento presenciado, como ao relatar um evento o observador seleciona, hierarquiza, ordena as informações expostas, fazendo aí interferir as suas estratégias de narração. (106/107).

Fatos existem, mas não como eventos “naturais”; eles se revelam ao observador – e são, eventualmente, por ele construídos -, segundo o acervo de conhecimentos e o instrumental psicológico e analítico que por ele podem ser mobilizados. Fatos existem, mas só podemos nos referir a eles como construções da linguagem. Descrever um fato é, ao mesmo tempo, interpreta-lo, estabelecer sua gênese, seu desenvolvimento e possíveis desdobramentos, isola-lo, enfim, como um ato, uma unidade dramática. (107)

O observador designa o que é um fato, mas o faz limitado por contextos econômicos, culturais, sociais, ideológicos, políticos, históricos, psicológicos e por sua própria competência discursiva, colocada em jogo em uma disputa de discursos e saberes, assim estabelecendo uma relação de poder simbólico – isto é, uma relação política, no sentido mais amplo do termo. (107)

O narrador (historiador, jornalista, cientista político) escolhe e singulariza determinado fato, motivado por aquilo que pretende, estrategicamente, demonstrar. (...) Mas, se é verdade que a escolha de um evento e de um determinado ponto de vista para analisar o evento depende integralmente do observador, isso não significa que ele tem o poder de alterar livremente os fatos.

Os fatos escolhidos por determinado narrador não existem isoladamente, mas são resultado de uma série de eventos. (O trabalho jornalístico ou o do historiador) será o de explicar, da melhor maneira possível, o encadeamento dos eventos: nenhuma interpretação poderá, com legitimidade, defender a tese de que foi a destruição de Hiroxima e Nagasáqui que iniciou a Segunda Guerra. Se não há uma única “verdade histórica”, isso não significa que qualquer versão seja aceitável como “verdadeira”. (108)

Mesmo a frase mais simples sobre o evento mais “objetivo” – algo como “choveu ontem” – terá de ser diagramada na página do jornal. A escolha do local da página onde será dada a notícia depende de uma interpretação, de uma hierarquização de outras notícias em relação a esta (ou seja, de um “comentário” plástico, não-verbal, sobre um acontecimento em dada localidade e que tornou importante o fato de que “choveu ontem”). A concepção de “objetividade sustentada pelo manual, quando articulada com as definições de “fato” e “notícia”, revela-se expressão de um discurso técnico e tecnicista, para o qual descrever “o fato real” é decompô-lo em suas partes mais elementares. (162)

Essa troca de impressões – repleta de acidentes, de acontecimentos causais, de trocas e olhares, de relações não-verbais – acabará formando a convicção mais profunda e duradoura em relação a determinado evento. Ninguém pretende afirmar, com isso, que para conhecer os processos históricos é absolutamente necessário ou suficiente vivê-los pessoalmente. Nenhum de nós viveu no Egito dos faraós, mas temos uma razoável certeza de que o que sabemos sobre ele é verossímil, porque podemos entender o mundo que os egípcios criavam por meio da linguagem, e só podemos entendê-lo porque também criamos o nosso mundo da mesma forma. (193)

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